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Revista Carta Capital

Mentalidade predatória (5 notícias)

Publicado em 10 de julho de 2024

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Por Carlos Drummond

A projeção do Ministério da Fazenda de que o Plano de Transformação Ecológica, associado a reformas estruturais, pode dobrar o PIB em duas décadas, sugere uma possibilidade promissora, mas não há como antever em que medida o projeto dará conta de um dos maiores empecilhos na adaptação da economia à mudança climática: a transformação da mentalidade predominante. “A gente vive uma situação na agricultura bastante complicada, estamos no meio mais conservador do Brasil. Um trabalho recente da UFMG mostra um resultado escandaloso: 40% dos agricultores brasileiros não acreditam na mudança climática. Eles respondem por 25% do PIB e acham que não está acontecendo nada”, destacou Eduardo Assad, pesquisador de alterações do clima durante 35 anos na ¬Embrapa e atual pesquisador do Observatório de Bioeconomia da FGV, durante a Primeira Conferência Nacional de Mudanças Climáticas, realizada no fim do mês passado. “Algumas coisas estão mudando, mas muito pouco em relação ao tamanho do problema.”

A insuficiência do avanço para deter o cataclismo alimenta um ceticismo até entre os cientistas, aponta pesquisa recente do jornal inglês The Guardian. Quase 80% dos principais especialistas climáticos do mundo preveem pelo menos 2,5 graus centígrados de aquecimento global, enquanto quase metade prevê ao menos 3 graus e apenas 6% consideraram que o limite de 1,5 grau pactuado no Acordo de Paris será cumprido, o que terá consequências catastróficas para a humanidade e para o planeta. Muitos dos cientistas, relata o Guardian, preveem um futuro “semidistópico”, com fome, conflitos e migrações em massa, impulsionados por ondas de calor, incêndios florestais, inundações e tempestades com uma intensidade e frequência muito superiores às que já ocorreram.

Além da incompreensão de agricultores e do ceticismo de cientistas, há o desafio de transformar o modo convencional de os economistas encararem as suas próprias tarefas, conforme apontou na Conferência a presidente do Ipea, Luciana Serva. Em sua maioria, eles costumam olhar para insumos e produtos, em um modelo de produção no qual o que interessa é o resultado, medido por meio de indicadores macroeconômicos como o Produto Interno Bruto, entre outros. “O grande desafio, quando se sai de uma visão macroeconômica tradicional, é não olhar isso só como insumo, mas também como oportunidade, com um modelo de adaptação que, de modo muito sério e honesto, não encare esses potenciais de água, floresta e biodiversidade só como insumo a ser explorado”, sublinha. Esse enfoque, acrescenta Serva, permitirá aproveitar as oportunidades “de modo muito mais inteligente do que nos nossos últimos planos de desenvolvimento, quaisquer que sejam eles”.

Somente 6% dos cientistas acreditam que o limite de 1,5ºC pactuado no Acordo de Paris será cumprido

A mudança no modo de encarar a economia implica, em grande medida, questionar a situação de anexação da natureza pelo capital e sua transformação em recurso apropriado de forma gratuita ou barata, sem reparação ou reposição, na suposição tácita de que a natureza é capaz de autorrestauração infinita, observa a cientista política Nancy Fraser, professora da New School for Social Research, de Nova York, em seu livro Capitalismo Canibal (Autonomia Literária).

Várias incompreensões e inúmeros equívocos atrapalham o conhecimento necessário ao enfrentamento da emergência climática. Muitos acreditam que a insuficiência crescente de água para a agricultura, devido à alteração no regime de chuvas, em si um resultado das mudanças climáticas, poderá ser resolvida com irrigação, o que é um enorme engano. Apenas 7 milhões de hectares, dentre os 80 milhões de hectares de terras agricultáveis no País, são irrigáveis, ao custo de 2 mil dólares por hectare. O cultivo da soja, carro-chefe da economia brasileira, utiliza 50% da terra agricultável e depende visceralmente do clima, alerta Assad. Haverá um problema sério de perda de produtividade na agricultura, acrescenta.

Alega-se que a perda de produtividade prevista não deve ser problema, porque a soja transita pouco para chegar nos portos de embarque, mas a questão é mais complicada. Assad, Erick Fernandes, do Banco Mundial, e Hilton Silveira Pinto, da Universidade de Campinas, calcularam que as terras cultiváveis, que deveriam aumentar para 17 milhões de hectares em 2030, comparadas àquelas observadas em 2009, podem ser reduzidas a apenas 10,6 milhões de hectares, como resultado das mudanças climáticas. A Região Sul será, segundo os pesquisadores, a mais afetada, e corre o risco de perder quase 5 milhões de hectares em 2030. Uma tragédia adicional, cabe anotar, àquela provocada neste ano pelas enchentes no Rio Grande do Sul.

“Em partes da Amazônia plantaram bois, isto é, capim para alimentar gado, e o legado foi o solo extremamente degradado. Toda a capacidade da planta de produzir fotossíntese ficou guardada no solo”, ressalta Lucieta Guerreiro -Martorano, engenheira agrônoma e meteorologista da Embrapa. O resultado foi o acúmulo de água no solo, em quantidades excessivas para o cultivo da soja que substituiu os pastos. Nessas condições surgiu o problema da “soja louca”, doença que causa afilamento e enrugamento das folhas e engrossamento de nervuras da planta e reduz a produtividade. Dados da Embrapa revelam que, em regiões mais quentes e chuvosas, em especial nos estados de Mato Grosso, Pará, Amapá e Tocantins, a doença pode comprometer até 100% da produtividade das plantações.

Ensaios feitos no Instituto de Pesquisas Ambientais de São Paulo, em câmaras que simulam o clima das próximas décadas, com mais gás carbônico na atmosfera e menos água no solo, em comparação com os teores atuais, apontam a tendência de o café produzido no Brasil ser mais amargo, ácido e adstringente dentro de dez a 20 anos, divulgou a revista Pesquisa FAPESP. Simulações de pesquisadores da Universidade Federal de Itajubá, em Minas Gerais, indicam a possibilidade de entre 35% e 75% das terras hoje ocupadas por cafezais se tornarem impróprias, em consequên¬cia das alterações no clima, até o fim do século. Estudos da Unicamp mostram que as áreas dos cafezais no País podem ficar restritas às mais altas do Sudeste.

Ameaçadora para o conjunto da economia mundial, a crise climática será ainda pior para a América Latina, alerta um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, órgão da ONU. Responsável por menos de 10% das emissões mundiais, o continente é “extremamente vulnerável” ao impacto das mudanças no clima, aponta a Cepal. Há uma “dupla iniquidade”, sublinham os autores do trabalho, pois as camadas econômicas de renda mais alta no continente são responsáveis pela maior parte das emissões, enquanto as camadas baixas contribuem em menor medida para gerar emissões de gás carbônico, mas são as mais vulneráveis aos seus efeitos, por habitarem ¬regiões mais expostas aos eventos extremos e disporem de menos recursos para se adaptar às transformações.

O cultivo da soja utiliza 50% da terra agricultável e depende do clima visceralmente

A mesma parcela de menor renda, prossegue o trabalho, quando recebe melhor remuneração, gasta uma parte maior do seu orçamento em combustíveis e outros bens e serviços que paulatinamente vêm sendo privatizados, como a educação e a saúde. Essa transição dos serviços públicos para os serviços privados de transporte, saúde, educação, segurança e espaços de convivência acentua um modelo de desenvolvimento que tende a uma maior segmentação social e dificulta o cumprimento das metas climáticas.

Para boa parte das pessoas, frisa a presidente do Ipea, os problemas ambientais de degradação da paisagem, desertificação, perda de biodiversidade, conflitos por terra e água, má distribuição de água para abastecimento humano, intenso quadro de poluição de praias, aumento do risco de desastres naturais devido à ocorrência de fortes chuvas e secas localizadas não são novidade. Mas, para os economistas, de forma geral, isso não é considerado essencial, pois não tem a centralidade que deveria ter na pauta econômica mundial. Esse é o grande desafio também para as políticas públicas, sublinha Serva, e para as gestões de recursos, de diversidade, do solo, políticas para adaptação e mitigação, assim como para as políticas gerais, urbanas, federativas, macroeconômicas, sociais e aquelas relativas aos setores econômicos, notadamente macroeconômicos.

Até 2030. A região Sul corre o risco de perder 5 milhões de hectares cultiváveis – Imagem: Arquivo/GOVRS

“Se boa parte do nosso problema de emissões está relacionada ao uso do solo e à agricultura, temos de atuar nesses dois grandes segmentos, que dentro do Congresso são, hoje, muito fortes. Qualquer iniciativa de regulação, seja em nível do Congresso, seja no âmbito das Assembleias Legislativas, ou das políticas locais, que também definem o uso do solo, e como é que se vai fazer sua exploração econômica, passa a ser uma área em que temos de atuar formando uma evidência qualificada, inclusive em termos políticos, para informar a discussão”, resume a presidente do Ipea.

A cada dia são divulgadas novas evidências da emergência climática. Na terça-feira 2, um estudo elaborado pela USP apontou que a seca do Cerrado brasileiro é a maior em mais de 700 anos. •

Publicado na edição n° 1318 de CartaCapital, em 10 de julho de 2024.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Mentalidade predatória’

Carlos Drummond

Editor de Economia da edição impressa de CartaCapital

 

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